Você imagina uma transferência bancária feita com um clique, num laptop, à beira da piscina em alguma ilha do Caribe. Um milhão de dólares movido sem perguntas, sem burocracia. A realidade, para quem decide ter uma conta lá fora, começa de um jeito bem menos glamoroso: numa pilha de papelada. E com muitas, muitas perguntas.
O funcionamento de uma conta offshore é menos sobre paraísos fiscais e mais sobre barreiras de entrada. É um sistema desenhado para ser exclusivo, e essa exclusividade começa no primeiro “bom dia” que você dá ao banco ou à consultoria que vai te ajudar.
Fui conversar com um advogado especializado em direito internacional, um tipo que já viu de tudo nesse meio. Ele deu uma risada curta quando perguntei se era fácil abrir uma conta dessas.
“Fácil? Depende da sua definição de fácil”, ele disse, ajeitando a gravata. “Não é como abrir uma conta digital aqui no Brasil, que você resolve em cinco minutos com uma selfie. O processo é… minucioso. Eles querem saber quem é você, de onde veio cada centavo do seu dinheiro e o que você pretende fazer com ele. Se você não tiver uma boa história, e documentos para provar, a porta nem se abre.”
É o famoso compliance, o filtro. Antes de sonhar em investir em ações da Apple ou comprar um apartamento em Lisboa com esse dinheiro, você precisa ser aprovado. E o pente-fino é rigoroso.
A porta de entrada: burocracia e o “know your customer”
Vamos direto ao ponto. Para abrir a conta, você não vai simplesmente pegar um avião para as Ilhas Cayman. O processo quase sempre é feito por intermediários – escritórios de advocacia ou consultorias especializadas que têm relacionamento com os bancos lá fora.
Eles vão te pedir o de sempre, só que com lupa. Passaporte, comprovante de endereço. Mas o pulo do gato é a comprovação da origem dos recursos. Não adianta chegar com uma mala de dinheiro. Você precisa mostrar de onde ele veio: venda de um imóvel, distribuição de lucros da sua empresa, uma herança. Tudo documentado, com declarações de Imposto de Renda que façam sentido com o montante que você quer enviar.
Um ex-gerente de compliance de um banco suíço me contou, em off, como a coisa funciona na prática. “Nosso trabalho era ser o cético, o pessimista profissional”, ele explicou. “A gente recebia a papelada e começava a caçar furos. A história fecha? O volume de dinheiro é compatível com a atividade do cliente? Qualquer… qualquer coisinha que cheirasse a inconsistência, a gente parava tudo. A multa para o banco por lavar dinheiro é gigantesca. Ninguém quer esse risco.”
Uma vez que o seu dossiê é aprovado, a conta é aberta em seu nome ou, mais comumente, em nome de uma empresa (uma offshore company) aberta por você naquela jurisdição. Essa empresa, da qual você é o dono, será a titular da conta. É uma camada extra de organização e, para alguns, de privacidade.
Só então, a conta existe. Mas ela está vazia.
O caminho do dinheiro: o câmbio oficial
Agora, como o dinheiro sai do seu CPF aqui no Brasil e chega lá? Esqueça o doleiro, o “dólar-cabo” e outras gambiarras que a Lava Jato mostrou para o país. O caminho legal tem nome e sobrenome: contrato de câmbio.
Você vai a um banco ou corretora de câmbio autorizado pelo Banco Central do Brasil e informa que quer fazer uma remessa para o exterior, para uma conta de sua titularidade. O propósito? Aumento de capital na sua empresa lá fora, ou um investimento direto. O banco vai executar a operação de câmbio, converter seus reais para dólares ou euros, e transferir os recursos via sistema SWIFT para a sua conta offshore.
É tudo registrado. Cada centavo. O Banco Central sabe que o dinheiro saiu. A Receita Federal, por sua vez, espera que você conte para ela onde ele foi parar.
O jogo mudou drasticamente nos últimos anos. Aquele sigilo bancário de filme, onde ninguém contava nada para ninguém, ruiu. Com acordos como o CRS (Common Reporting Standard), mais de 100 países trocam informações financeiras de forma automática. Se você tem uma conta nas Bahamas, o governo de lá vai avisar o governo brasileiro. Simples assim.
A vida lá fora: usando e, principalmente, declarando
Com o dinheiro na conta, a liberdade é maior. Você recebe um cartão de débito ou crédito internacional, pode fazer transferências para qualquer lugar do mundo, investir em bolsas de valores, comprar títulos, adquirir imóveis. As operações são mais ágeis e menos burocráticas do que seriam a partir do Brasil.
Mas essa liberdade vem com uma responsabilidade fiscal inegociável.
No ano seguinte à abertura e ao envio dos recursos, você tem um encontro marcado com o Leão. Na sua declaração de Imposto de Renda, você precisa informar, na ficha de “Bens e Direitos”, a existência da sua empresa offshore e o saldo da conta bancária em 31 de dezembro. E se o total dos seus bens no exterior ultrapassar 1 milhão de dólares, você ainda tem outra obrigação: a Declaração de Capitais Brasileiros no Exterior (DCBE), entregue anualmente ao Banco Central.
O advogado tributarista resumiu o sentimento geral. “Esquecer de declarar é o pior erro que alguém pode cometer. A multa é pesada, pode chegar a 150% do imposto devido, e ainda abre a porta para uma acusação de evasão de divisas. Hoje em dia, com a troca de informações, a Receita não precisa mais procurar. A informação chega para ela de bandeja.”
No fim das contas, o funcionamento de uma conta offshore é um paradoxo. É um sistema que oferece liberdade e acesso global, mas que exige uma disciplina e uma transparência que muitos, atraídos pelo mito do segredo, não estão dispostos a ter.
